• por Os Editores
    Out 27

    Atrasos & problemas

    informação


    Os finais de ano são os períodos mais caóticos para uma editora. Os livros têm de sair antes de o ano terminar e, como todas as editoras têm a mesma urgência, as gráficas estão cheias de trabalho. Qualquer problema leva imediatamente a um atraso.

    Assim, anunciamos aqui os nossos atrasos para 2023:

    ENSAIOS, VOL. II, de Montaigne
    Devido a um atraso na gráfica, o livro só será expedido para os apoiantes e as livrarias no dia 2 ou 3 de Novembro.

    ELOGIO DA LOUCURA, de Erasmo de Roterdão
    Por motivo de doença grave do tradutor, tivemos de procurar outra tradução.
    Não conseguimos ainda dar uma garantia quanto ao prazo exacto, mas teremos um destes dois cenários:
    a) ou o livro será publicado em Dezembro e enviado aos apoiantes, chegando às livrarias em Janeiro/Fevereiro ou
    b) o livro apenas estará pronto para os apoiantes em Janeiro, chegando às livrarias nesse mesmo mês ou no seguinte. Se algum dos apoiantes quiser desistir do apoio, basta que nos contacte através do formulário de contacto do site, indicando o número da sua encomenda.

    HISTÓRIA DA ÍNDIA, de John Keay
    Há um pequeno atraso de semanas devido à revisão desta obra extensíssima. O livro será expedido para os apoiantes e as livrarias em Novembro.

    Os restantes títulos ainda previstos para este ano não têm atrasos a registar e estão dentro dos prazos.
     

  • por Os Editores
    Jun 06

    Porquê publicar um Autor totalmente desconhecido?

    Informação
    [Reproduz-se aqui o texto que serve de prefácio à obra As aventuras de Sindbad, de Gyula Krúdy para apresentar ao leitor português um escritor totalmente desconhecido entre nós]




    Um prefácio sobre como a magia
    d’As Mil e Uma Noites viaja pelo mundo e o vai
    transformando sendo também por ele transformada
    (E depois as coisas ficam negras)

    Quando um editor publica um clássico «estranho», o leitor pode perguntar-se como é que o dito editor deu com aquela obra e por que motivo considera importante publicá-la. Desse processo e dessas razões se falará neste curto prefácio.

    Quando Gabriel García Márquez (1927-2014) estava no seu apogeu literário, foi certa vez questionado por um jornalista cultural que o confrontava com o facto já comummente aceite de que tinha sido ele, García Márquez, a «inventar» o Realismo Mágico, nome que a crítica e a academia davam ao tipo de obras produzidas durante décadas por boa parte dos escritores sul-americanos de língua hispânica. Márquez contradisse o jornalista de forma simples: «quem criou este tipo de literatura foi Juan Rulfo.»

    Juan Rulfo (1917-1986), escritor mexicano com uma obra curta, mas universalmente reconhecida como inovadora e brilhante, um autor que vivia longe dos holofotes e produzia uma literatura escassa que era admirada por leitores selectos em todo o mundo, foi confrontado com a afirmação de García Márquez e admitiu que nada tinha inventado e que se inspirava no estilo e na temática das obras do Prémio Nobel islandês Halldór Laxness.

    Assim, na busca da origem de uma escola literária especificamente sul-americana, o jornalista tinha acabado num Autor da América Central que o remetia para uma ilha a meio caminho entre a América do Norte e a Europa. Em risco de perda de uma literatura de marca--registada sul-americana, a demanda pelas suas origens fraquejou e tanto os jornalistas como a academia preferiram deixar a questão morrer. Contudo...

    Halldór Laxness (1902-1998), em diversas entrevistas e escritos sobre literatura em geral, dizia-se inspirado sobretudo por dois grandes nomes: o checo Bohumil Hrabal (1914-1997) e o húngaro Sándor Márai (1900-1989). Estes dois grandes nomes da literatura universal, naturais de dois dos países que tinham feito parte do Império Austro-húngaro, reconheceram abertamente que a sua grande influência fora Gyula Krúdy.

    Passa muitas vezes ao lado do leitor contemporâneo, para não falar da crítica e da academia, a «geocultura» de um passado relativamente próximo. Com efeito, há pouco mais de 100 anos, o Império Austro-Húngaro era uma das grandes nações europeias. Dentro desse império, literaturas em línguas diversas tinham um espaço comum geralmente oriundo de traduções para a língua institucional – o alemão. A literatura húngara tem, pois, uma longa tradição e um impacto internacional que hoje cai muitas vezes no esquecimento.

    Bastará, como exemplo, referir que no Império Britânico o grande rival de Charles Dickens a dar à estampa best-sellers era o escritor húngaro Mór Jókai (1825-1904), o escritor preferido da Rainha Victória, cujos livros, em tradução para inglês e noutras línguas, se vendiam em quantidades astronómicas para a época. A literatura húngara era uma literatura internacional, culta, cosmopolita e diversa. Se tivermos em conta a dificuldade de tradução do húngaro, que é, juntamente com o finlandês, uma das poucas línguas ocidentais que não têm a base comum indo-europeia que une o hindi e o alemão ou o português nas suas origens remotas, teremos uma noção da influência do Império Austro-Húngaro e do seu poderio cultural, capaz de impor uma língua cujo sistema linguístico é totalmente diverso do de quase todas as línguas do chamado mundo civilizado ocidental.

    Voltemos então a Gyula Krúdy (1878-1933) – ou Krúdy Gyula, uma vez que em húngaro a ordem do apelido e do nome é invertida, tal como acontece em chinês – sem pretensões de fazermos aqui qualquer tipo de biografia. Bastará dizer que desde jovem teve a paixão da escrita e não obedeceu à vontade paterna de se formar em leis, pelo que, quando em 1896 se mudou para Budapeste, foi deserdado. Viveu da escrita, e de que maneira: Krúdy publicou 86 romances, mais de 3000 contos e cerca de 1200 artigos, ensaios, reportagens e crónicas.

    Quem queira saber e investigue nas mais diversas fontes descobrirá que Krúdy foi o escritor húngaro mais famoso do seu tempo, traduzido em dezenas de línguas e que as suas obras, ao longo da vida e posteriormente, foram por diversas vezes adaptadas ao cinema e levadas ao palco. Poderá também o leitor descobrir que o auge da sua carreira foi interrompido pela Primeira Guerra Mundial [Ainda assim, em 1915 publicou o seu segundo volume reunindo as aventuras de Sindbad e, em 1916, em plena guerra, recebeu o Prémio Literário József Ferenc.] e que, depois desta, nos anos 20, foi vítima de ataques vários à sua obra e reputação após a queda da República Soviética da Hungria.

    Descobrirá também como, daí para a frente, apesar de continuar a ser um escritor de grande êxito, as condições económicas do país e a falta de receitas das vendas dos seus livros no estrangeiro acabaram por condená-lo a anos de dificuldades económicas, incertezas, bebida e muitas dívidas. Como em 1930 recebeu o Prémio Baumgarten, o mais importante prémio literário húngaro. Como o seu nome foi, de alguma forma, restabelecido com a publicação do romance de Sándor Márai Sindbad Regressa a Casa, em 1940, uma obra que ficcionava os últimos anos de vida de Krúdy, fazendo referência ao seu herói icónico no título. Como nos anos 70 foi finalmente publicada a recolha das suas obras completas em dezenas de volumes. Como, nos anos 80, o futuro Nobel Imre Kertész (1929-2016) admitiu que a língua húngara na sua forma escrita, como os escritores húngaros a usaram ao longo do século xx, foi a língua «criada» por Krúdy. Muitas outras referências poderiam ser aqui dadas para demonstrar de que forma a obra de Krúdy teve uma influência transversal nos países que estiveram ligados ao antigo Império Austro-Húngaro e aos países vizinhos, tendo o leitor percebido, entretanto, como é que a sua influência chegou às literaturas escandinavas e às literaturas das Américas Central e do Sul.

    Mas se falamos sobre a ascendência da obra de Krúdy não podemos deixar de introduzir o clássico que determinou a criação do seu personagem icónico, cuja presença literária na sua ficção curta se recolhe neste volume pela primeira vez em tradução portuguesa. No século xviii o polímata Antoine Galland viu-se na posse de um antigo manuscrito que recolhia várias histórias de tradição oral do folclore árabe. O título da obra era As Mil e Uma Noites e o manuscrito em si estava incompleto.

    Galland empenhou-se em traduzi-lo adaptando a rudeza e a imperfeição de histórias de registo oral à beleza e sensibilidades do seu tempo e da literatura francesa. Mas uma das coisas que mais perturbavam Galland era o facto de o manuscrito apenas ter perto de 200 noites. Não tinha ainda acesso às recolhas de contos tradicionais árabes que usavam designações como «mil e uma» para significar «muitos», o que não queria dizer que ali se recolhessem exactamente 1001 histórias. Assim, frustrado nas suas intensas buscas por uma cópia completa d’As Mil e Uma Noites, Antoine Galland juntou à sua tradução do manuscrito a de outros que recolhiam outras tantas histórias tradicionais (e quando descobriu que, mesmo assim, ia ser difícil chegar às 1001, deixou, a certa altura, de numerar as noites, pois assim talvez o leitor não o notasse). Ora, um dos manuscritos utilizados reunia as aventuras de Sindbad, o marinheiro, outra famosa recolha de histórias tradicionais árabes em nada relacionada com As Mil e Uma Noites, mas que deste modo passou a integrar a tradução literariamente aprimorada da obra e, como tal, veio a tornar-se parte de um êxito em traduções que entretanto apareceram um pouco por todo o mundo. A tradução para húngaro de As Mil e Uma Noites, de Antoine Galland, foi uma das leituras de infância de Krúdy. E Sindbad o nome escolhido para um herói muito especial.

    Na primeira década do século xx, Krúdy tinha imensas colaborações em jornais e revistas e a sua pena produzia contos e artigos em catadupa (o que, à semelhança do nosso Camilo, que também viveu da escrita, nada punha em causa a sua qualidade literária). A produção de Krúdy ia da história mais tradicional, com princípio meio e fim, a obras literariamente experimentais em que «brincava» com ideias e conceitos. Mas Krúdy procurava conciliar ambas e, nessa altura, surgiu-lhe a ideia de utilizar Sindbad, o marinheiro. Sindbad era uma alcunha que o próprio personagem adoptara ou com a qual algum dos seus confrades o designara. Ao longo de dezenas de contos e dois romances (que não se recolhem nesta colecção), Sindbad pouco mais é do que, precisamente, uma alcunha: não tem nome próprio e possui pouca substância. É um personagem pouco palpável, quase irreal. Na visão que Sindbad tem de si mesmo e naquela que dele fazem quantos com ele conviveram está a essência de Sindbad, o marinheiro de As Mil e Uma Noites. O aventureiro irrequieto e eternamente insatisfeito numa demanda por algo maior. Mas o Sindbad de Krúdy não procura tesouros, procura Amor.

    O Sindbad de Krúdy voga por um tempo contemporâneo ao do seu autor, o final do século xix e o começo do século xx, saltando dos braços de uma apaixonada para o colo da seguinte. Um Don Juan, um novo Casanova. As aventuras de Sindbad, «o marinheiro das mil e uma noites», é, ao mesmo tempo, uma ironia colegial sobre o amante nocturno e uma alusão ao herói inconstante, irrequieto e incapaz de qualquer tipo de compromisso que o alfinete (do verbo alfinetar para quem suspeite) a um lugar específico ou a uma determinada amante. Se as primeiras histórias seguem a estrutura das narrativas de As Mil e Uma Noites, com a sua sucessão, contudo, os contos e o próprio personagem vão-se tornando cada vez mais independentes.

    Assim, as aventuras de Sindbad, o amante de todas as mulheres e o amado de todas elas – seja essa mulher a filha do ferreiro numa pequena aldeia ou a actriz célebre numa metrópole famosa –, dividem-se geralmente em três ciclos. No primeiro, Sindbad visita as mulheres que amou: procura reviver os amores passados que idealiza como tendo sido belos. O presente nada lhe traz de novo: Sindbad já viveu tudo, já tudo experimentou. Nessas histórias passado e presente misturam-se, bem como os seus discursos e planos temporais (da mesma forma como, umas décadas depois, o Prémio Nobel Mario Vargas Llosa – n. 1936 –, herdeiro do Realismo Mágico, viria a integrá-los nas suas obras com louros de pioneiro).

    Na passagem do primeiro ciclo de histórias para o segundo, Sindbad vai percebendo que a idealização do amor raramente corresponde ao que foi a realidade da vivência dessas relações. Não é possível fazer renascer o passado e a memória é sempre mais bela do que a realidade. Nesse segundo ciclo, Sindbad procura então reinventar o presente e torná-lo mais belo: adopta os prazeres da gastronomia e da boa vida. Mas essa mesma vida vai-se tornando mais e mais opressiva. Há toda uma sensação de decadência que se alastra pelas histórias. A liberdade da juventude, mas também os valores sociais, perderam-se. Sindbad torna-se mordaz face a um mundo que se aproxima do fim.

    O terceiro ciclo de histórias de Sindbad, surgido após a Primeira Guerra Mundial, apresenta-nos o herói morto, mas, desta feita, vivo na lembrança das mulheres que amou e que o amaram. Também aqui, então, Sindbad nunca chega a ser um personagem completamente real: é uma lembrança grada, uma memória apaixonada, uma figura por entre as brumas do tempo que se esvanece (do verbo esvanecer para quem suspeite) no passado.

    O jogo do Amor é, ao mesmo tempo, algo leve e pesado, com regras e sem elas. A palavra «jogo» não é inocente: homens e mulheres testavam-se, aprendiam e, derradeiramente, faziam as suas escolhas para a vida ou para um certo período. Claro que essa realidade está mais longe daquela que nós, nos países de moral católica mais rígida, alguma vez vivemos. Esta realidade que dava à própria mulher um papel mais activo nada tem que ver com a nossa tradição do sul da Europa, mas isso não quer dizer que tenha sido ficção. Existiu num espaço real e num tempo concreto bastante mais modernos do que hoje podemos imaginar. E, chegado a este ponto da viagem, o leitor começa a aperceber-se de que aprendeu tanto, tanto. As histórias que leu assemelham-se, mas, na sua parecença, há sempre pequenas variações. Com elas o leitor conseguiu entrever um lampejo da velha Europa, da sua estratificação social, moral e ideológica. Por outro lado, o leitor acompanhou as aventuras finais de um galã europeu nos seus affaires, no cortejo amoroso, esse jogo do enamoramento cujas regras vigoraram na Europa desde o século xii quando Andreas Capellanus as estabeleceu para os longos séculos vindouros. O leitor também tem, agora, uma percepção da forma diversa como os homens vêem e idealizam o amor e a relação amorosa, e, por outro lado, a perspectiva feminina sobre o mesmo. E, por fim, o leitor ganhou também uma sensibilidade para o que se perdeu.

    Krúdy é o pintor de um mundo em decadência no começo do século xx, um mundo que entra em desmoronamento total no intervalo das duas guerras. Krúdy pinta o fim do Amor pelo Amor, o fim da capacidade de sacrifício pelo outro e o fim dessa forma essencial de comportamento humano que pautava uma cultura eminentemente europeia: a cortesia. Não admira que seja muitas vezes associado a Joseph Roth e ao mais tardio Buhomil Hrabal: são escritores de um génio literário incomparável, mas são também, ao mesmo tempo, as vozes literárias mais conscientes do fim de um mundo.

    Algures entre as guerras mundiais perdeu-se esse mundo e perdeu-se esse Amor. Décadas mais tarde, uma realidade muito próxima daquela que Krúdy e escritores seus contemporâneos descrevem era a base de grande parte da ficção (e de uma certa realidade) do tal Realismo Mágico centro e sul-americano, em sociedades que eram tão culturalmente diversas e se situavam, quase literalmente, do outro lado do mundo.

    Quem leia as obras de Krúdy ou Roth e observe o retrato do jogo amoroso repara em algo de semelhante nas literaturas de García Márquez, Llosa ou tantos outros. A mulher com muito mais poder de escolha do que os paradigmas sociais levariam a crer e, muitas vezes, com o domínio do jogo. Mas também a proximidade maior entre os seres humanos, uma noção hoje quase arcaica de camaradagem… E ali, ao lado, em português, Vinicius de Moraes escrevia uma Carta ao Tom, corria o ano de 1974, em que dizia quão importante era «inventar de novo o amor».

    Possamos nós extrapolar que cada fim de um ideal de Amor seja o fim de um mundo, quando a capacidade de sacrifício pelo outro for substituída por egoísmos, quando o Amor deixar de ser o objectivo maior dos seres humanos, esmagado por rituais e trivialidades que o esvaziam de substância, e observando como, no tempo de Krúdy ou de Roth, no final desse trajecto de decadência, esperavam duas guerras mundiais, veremos, talvez com outros olhos, o mundo em que vivemos e uma guerra que começou geograficamente próxima das outras duas e que já não envolve apenas a Ucrânia e a Rússia.


    Hugo Xavier
    Editor




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