Quando plo seco Março entra Abril
Levando à raiz as águas mil
E embebendo as veias em licor,
Virtude com a qual se engendra a flor;
Quando Zéfiro, o próprio, um novo alento                                                   5
Por bosque ou urze à folha e ao rebento
Inspira, e o sol jovem ao Carneiro
Marrou já pla metade o seu carreiro
E as tenras aves vão melodiando
Do sono de olho aberto despertando                                                             10
(Assim a Natureza as atiça);
Então o peregrino pede missa
E horizontes remotos o palmeiro,
Altares de fama em estranho paradeiro;
Mormente em Inglaterra, se há condado                                                      15
Que o seja, a Cantuária é levado    
A ver o santo mártir que lhes vale
No leito acamado do hospital.
            Ora nessa estação e nesse dia,
No The Tabard em Southwark eu jazia                                                                          20
À espera de ir de todo o coração
A Cantuária em peregrinação,
Chegou à noite àquela hospedagem
Um grupo, uns vinte e nove, de romagem,
Sortida gente em trupe casual,                                                                                       25
Pois peregrinos eram no geral
Que a Cantuária iam em rebanho.
Aos quartos e aos estábulos tamanho
Não lhes faltava, nem a nós conforto.
E quando o sol se pôs em longe porto                                                                          30
Já eu com todos tinha conversado
E, um deles me tornando, concordado
Fazer-me à estrada cedo ao acordar
Para a jornada, a qual vos vou contar.
 
 
O excerto acima reproduz os primeiros versos de Os Contos de Cantuária, concretamente do seu Prólogo Geral. Com eles pretendo dar, de um modo especial, uma amostra do tom e do ritmo presentes ao longo do meu trabalho de tradução da obra. Embora realizando uma antiga vontade, traduzir Os Contos de Cantuária materializa uma não inesperada dificuldade. Talvez nenhuma obra antes, à excepção possível de Paraíso Perdido de John Milton, pudesse apresentar as vicissitudes do texto de Chaucer. Elas são de dupla ordem: por um lado fazer afeiçoar ao texto português dos nossos dias um texto em medievo inglês; por outro, fazê-lo chegar a salvo dos meros rigores técnicos, tendo sido capaz de preservar a vitalidade retórica e estilística do texto original. Quero com isto dizer que a manipulação da linguagem, as escolhas minuciosas que lhe são inerentes, a sua articulação geral, enfim, o texto obtido, não deve manifestar a dificuldade da sua engenharia, antes mostrar a sua gentil e turística arquitectura. O leitor português de Chaucer deverá, pois, ser merecedor de ler Chaucer sem ser insistentemente lembrado do percurso do seu tradutor. A par disto, é minha política e desiderato fazer do texto português um irmão estilístico da obra de que parte. Assim, Os Contos da Cantuária terão, idealmente, os mesmos versos do texto original e obedecerão, tanto quanto possível, a um esquema métrico que procurará imitar o andante do pentâmetro jâmbico presente na obra de Chaucer. Isto significa que o verso português frequentará, com tanta regularidade quanto lhe for possível, o modelo decassílabo, embora a sua vocação seja, analogamente à percussão inglesa, a alternância entre um pé fraco e um pé forte (e. g. À es/pe/ra /de_ir/de/to/do_o/co/ra/ção.) A acrescentar a isto, o texto português imitará, semelhantemente, o esquema rimático original, o qual consiste em dísticos. A preservação da rima não consiste numa mera vaidade nem tampouco numa experiência de mortificação interior; ela visa preservar o elemento melódico que é responsável directo pelo tão característico humor presente nesta obra. Assim, a rima é parte integrante deste portentoso edifício literário, é aquilo que o permite ser o que é e produzir no leitor aquilo que produz. Mas esta garantia não deverá implicar o descurar de uma outra: a pobreza da rima, a sua execução como um fim em si mesmo. É necessário que a correspondência de sons seja completa e, a par disto, imbuída de toda a discrição possível. Ora, esta operação é, compreensivelmente, demorada e complexa. Não raras vezes dei por mim literalmente embargado muitas horas a fio diante de certos passos, tentando perceber como moldar o texto ao desejado, sem sacrificar nenhuma das dimensões de que já fiz nota, e, claro está, sem a isso forçar o seu sentido. Ora, para garantir um tal movimento harmónico de sentido e prosódia, o tradutor precisa de se entregar a uma luta física e espiritual com o texto que quer emular. Este caderno de encargos pessoal implica alguma imprevisibilidade, no entanto é inegociável, ainda que o caminho se apresente pedregoso e longo o tempo desta peregrinação pessoal. Estou convencido de que o leitor de Chaucer será o último beneficiário desta rigorosa escolha, a qual, no seu grau último, há-de transformar Canterbury Tales em Os Contos de Cantuária. De facto, tal como acontece com aquelas personagens em peregrinação ao túmulo do santo com que em breve iremos partilhar a jornada, é um credo que me anima: o de trazer ao leitor português uma obra extraordinária, um dos mais estabelecidos e antigos marcos da literatura universal, cuidando nesse credo que, apesar das vicissitudes e as travagens inesperadas nesta longa peregrinação em que se fez a tradução, esta foi capaz de, apesar de muito provada, trazer intacta ao seu leitor o texto sacro que revelou afinal ser a grande busca dos seus peregrinos, a própria materialização do túmulo de São Thomas Becket, o santo mártir de Cantuária, motor de uma peregrinação narrativa que se tornou, ela própria, o grande relicário, o objecto de peregrinação e fim último e transformativo do seu leitor.
 
 
Daniel Jonas  

[A tradução será entregue no primeiro semestre de 2019.]